segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Blundering Trough Song

Quem me conhece sabe que minhas preferências musicais estão quase sempre no passado, principalmente entre os anos 1930 e 1970. Dentre os pouquíssimos artistas atuais que realmente gosto, existe um elemento comum que é o contato intenso com aquilo que já passou. Entre os modernos, aquele com maior contato com o passado e, portanto, que mais gosto é Jack White, com sua veia poética e caminhos profissionais pouco usuais. 
Membro comum de várias bandas dos anos 1990, iniciou um projeto com sua então esposa, Meg White, chamado The White Stripes. Depois de três discos lançados e algum nível de reconhecimento, aparece a saudosa Seven Nation Army, quase que uma peça folclórica da nossa geração, não é abuso considerá-la a mais famosa música dos anos 2000. Uma carreira de 10 anos tendo Meg como única companheira de banda ajudou a alavancar seu segundo projeto, The Raconteurs, com um foco mais abrangente que os Stripes (provavelmente associado à maior quantia de membros na nova banda), os Raconteurs logo alcançaram sucesso comercial e crítico. Em 2009, dois anos antes do fim da primeira banda citada aqui, nasce um terceiro grupo, The Dead Weather, usado para inaugurar a recém-nascida gravadora Third Man Records. Sem o mesmo impacto das duas bandas anteriores, o Dead Weather consegue um espaço respeitável no círculo artístico com suas influências eletrônicas e blueseiras. Mesmo sendo difícil de acreditar que esse sucesso aconteceria sem a carreira prévia de todos os membros da banda (na guitarra, Dean Fertita, do Queens of the Stone Age, Jack Lawrence no baixo, dos Greenhornes e Raconteurs, Alison Mosshart no vocal, do The Kills e, na bateria, Jack White), algumas peças genuinamente interessantes surgiram.
Então, depois de três sucessos (dois considerados supergrupos), o Sr. White resolve, este ano, assumir uma carreira solo, e logo no primeiro semestre de 2012 o disco Blunderbuss aparece nas lojas. Admito que fiquei, como todo bom fã de White Stripes, empolgado e realmente curioso, e, logo na primeira audição (dentro do metrô lotado, na hora do rush de São Paulo) considerei que havia achado uma nova pérola da nossa época. Mas mesmo com músicas realmente chamativas como On and On and On, Weep Themselves to Sleep e I'm Shakin' (essa última sendo um cover de Little Willie John) algo não me parecia certo. Recentemente rodei o disco mais uma vez e acabei entendendo minha opinião dividida.
Peças como Journey to the Centre of the Earth (Rick Wakeman), Dark Side of the Moon (Pink Floyd), Tubular Bells (Mike Oldfield) ou Led Zeppelin IV (Led Zeppelin), citando pouquíssimas, precisavam ser apreciadas por inteiro. Um braço ou uma perna ainda podem ser de algum uso quando separados do corpo, mas perdem sua verdadeira função e força quando amputados, essa é a analogia mais fiel ao poder de cada música que integrava os referidos discos. Uma história contada através de uma série de canções é uma herança cultural antiga e ainda muito valiosa, tanto num aspecto dramático quanto poético. Robert Plant, vocalista do extinto Led Zeppelin, revelou em entrevista que não gostava de laçar singles (discos contendo de duas a três músicas) justamente por reconhecer o valor do recurso que menciono. Infelizmente, esse aspecto de continuidade é ausente do Blunderbuss.
Uma música atrás da outra no disco de Jack White faz referência a casos amorosos desastrosos, existe um elo unindo cada faixa, mas a variedade enorme de estilos (cobrindo desde um rock influenciado por hip hop de Freedom at 21 até a balada suave de I Guess I Should Go to Sleep) e repetição incansável do mesmo tema não criam uma história, mas um aglomerado de reclamações, uma ótima coletânea.
Ainda considero White como sendo um dos últimos poetas da música pop, com a habilidade e talento necessários para se criar uma obra memorável, mas a mentalidade (assumida pelo próprio) de se tratar cada música como o lado A de um single acaba por roubar o mundo dessa possibilidade.

"Like just 'bout every other tale
Someone's gonna die in the end"
               - Jack White

(texto escrito enquanto o autor ouvia Blunderbuss no modo shuffle.)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

E-mails.


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Todo texto publicado nesse blog passa pelos olhos dos três colaboradores. Frequentemente conversamos por e-mail tentando bolar novas ideias e ver quem se encaixa melhor com determinado tema. Logo abaixo estou publicando um trecho de uma dessas conversas. Achei que ficou divertida demais pra deixar passar.
Os nomes dos colaboradores foram alterados, assim como a redação de cada um, mas sem comprometer nossos estilos. Enjoy!

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Don: Os tempos não são mais os mesmos, cara... Na antiga União Soviética era proibido escutar e até ter discos dos Beatles. Os jovens que eram realmente fãs compravam esses discos no mercado negro. O salário mínimo na época (comum a muitos jovens) era na faixa de 150 rublos, enquanto isso um disco da banda no mercado negro custava na faixa de 80 rublos. Ainda assim eles compravam.
Mas eles tinham problemas pra amplificar o som. Começou uma procura imensa por chapas usadas de raios X. O tráfico disso era surreal. Eles colocavam o disco em cima da placa, uma agulha no disco e rodavam. O som era amplificado e eles conseguiam ouvir. Sem amplificador, sem caixa de som. Só uma maldita chapa.

Dexter: Então agora você é comunista?

Don: Tô falando sério! Onde que tu acha que isso aconteceria hoje? Com que banda? Com que público?

Meg: Eu entendo o que você tá falando, mas a situação era completamente diferente. A música era muito mais do que só umas notas, era uma declaração pra humanidade. Não precisava ser os Beatles, ou os Stones, ou qualquer outra. A questão pra esses jovens era a de que existia um outro mundo, algo radicalmente diferente de tudo o que eles ouviram falar e, por acidente, os Beatles foram os mártires da situação.

Dexter: Essa é a questão que ele tá levantando. Ele tá falando da época em que música não era só entretenimento. Eu concordo que a visão do povo em relação à música mudou, mas a Meg tá certa, o mundo tá diferente.

Don: Ok, então o mundo mudou, a visão mudou, mas nem por isso o poder da cultura pop tem que enfraquecer. Podia ter mudado de forma, como todo o resto. Poderia não significar liberdade, mas dor, indiferença, qualquer outra coisa que marque o mundo de hoje!

Dexter: Acho que o problema é que os poetas que existiam acabaram se cansando, e não tem ninguém pra tomar o lugar. O Bob Dylan, por exemplo. O cara tinha uma voz horrível, fazia músicas cansativas, e só sabia irritar os fãs, mas a poesia dele era uma coisa que atingia as pessoas. Não sei contar quantas versões de músicas dele gravadas por outros que realmente impressionam, e acho que é porque tinha algo realmente potente naquele som. Algum sentimento muito intenso que não dava pra deixar passar, especialmente se você tivesse alma de poeta.

Meg: Mas nem todo mundo era poeta nessa época. Era o povão que curtia o som de alguém como o Dylan, mas era tudo trabalhador, gente que só ouvia isso depois de passar o dia na construção, estacionando carros, correndo atrás de remédio pros filhos, se quebrando pra pagar o aluguel. Sei que esse tipo de gente ainda existe, então como pode ninguém desse grupo ser chamado de poeta?

Dexter: Caralho, Meg. Não tô falando que todo mundo era poeta. Não basta assistir “On the Road” pra sacar a realidade da época. O fato é que toda ideia interessante, pra ser assimilada por alguém, tem que ser alguma coisa que esse alguém já pensou antes. Nem que tenha dispensado instantaneamente achando “ah, isso não me interessa agora”, mas já ficou dentro da pessoa aquilo. Se o playboyzinho ouve uma música sobre a empregada que faz tudo e não tem nada em troca, não vai significar nada pra ele. Pode até achar uma melodia bonita e tal, mas não passa disso. Agora, se o filho da empregada ouve essa música, ele se empolga com aquela sensação “cara, alguém mais saca isso!”. A poesia é aquilo que dá voz pros outros, não pro poeta. Ter a alma e o coração de um não significa que vai praticar, só que você vai entender.

Don: Cara, não sei ainda se concordo ou não com isso. Mas será realmente que o povo mudou de um jeito que não prestaria atenção em alguém que falasse em uníssono? Nada de promessas políticas, mas uma manifestação artística dando voz aos anseios e aos medos.

Dexter: Não acho que o povo sequer precise disso agora.

Meg: Tá, se o povo não precisa disso, então como pode tanta gente reclamar da qualidade da arte de hoje?

Dexter: É que quem reclama são aqueles que tem algo de diferente! Quem acha que Skrillex (acho que escreve assim o nome dele) é uma barulheira sem sentido e prefere ouvir algo como Chico Buarque ou Miles Davis é quem reclama. Não adianta esperar uma reclamação dessas de alguém que não tem mais sensibilidade nenhuma!

Don: Acho que estamos alienando gente demais, velho.

Dexter: A gente sempre alienou gente demais. Nós três. Por isso pulamos nesse negócio de blog! A gente ainda tem esperança que alguém se interesse e se sensibilize com aquilo que tem sentido pra gente. Você mesmo fala, Don, que não conhece quase ninguém que se empolgue de verdade com cinema e música. A Meg vive reclamando que não curte essa literatura intelectoloide do pessoal que cerca ela, e prefere alguma coisa com substância real! “It can’t be borrowed balls, recicled balls... They gotta be FRUIT balls!”*

Don: Mas e daí? Não adianta nada a gente achar um grupo legal pra ficar elogiando uns aos outros. Tu não acha que vale mais tentarmos converter pessoas que normalmente não pensariam naquilo que valorizamos? Nunca fomos isolados, e tu sabe disso. Sempre tivemos alguém pra conversar sobre o que fosse, e foram esses contatos que nos forçaram a pensar sobre algo além do que acreditávamos. Crescemos com cada contato que vem de fora do nosso mundo, então acho que é possível tentar achar gente que não acreditava ter interesse nisso tudo.

Meg: A religião da cultura pop? “Todos saúdem o Fonzie!”**

Dexter: Olha, até pode acontecer, mas como eu disse antes, não acho que sejamos bons o bastante pra colocar na cabeça de alguém alguma coisa que já não tenha passado por lá.

Don: Eu posso ser cínico pra diabos, cara, mas não consigo acreditar que as pessoas sejam TÃO fechadas assim!

Dexter: Eu torço pra estar errado, meu! Sério! Mas olha só. Nos anos 1950 tínhamos músicos fantásticos, Chuck Berry, Muddy Waters, Miles Davis, e assim vai. Hoje temos quem?

Meg: Também dá pra pensar que hoje tem a janela pra aparecer gente desse nível, mas com um foco que se adeque à necessidade popular atual.

Don: Exato.

Dexter: E enquanto isso tem o risco de alguém com verdadeira alma de poeta estar se encolhendo num canto achando que ninguém teria vontade de prestar atenção. Perdemos uma pessoa fantástica (culturalmente falando) enquanto tentamos encontrar um universo de gente meia boca.

Don: Cara! Isso é cultura pop! Não é uma salvação, não é uma necessidade vital pra maior parte das pessoas, não é algo que vai melhorar o mundo! Isso é alimento pra quem tá afim, só isso! Tu tem que parar de agir como se pudéssemos melhorar o mundo conhecendo um artista a mais ou a menos!

Dexter: Não é a arte que melhora o mundo, eu sei disso. Pra melhorar, o povo precisa se manifestar, ok. Mas será mesmo que o povo não se manifestaria se a visão de mundo fosse um pouco mais otimista? Não é isso que a arte faz pela gente?

Meg: A arte é uma escapadinha. Quem quer fazer realmente alguma coisa não depende de uma música ou um livro! O trabalho do artista é só ajudar os outros a se sentirem diferente daquilo que tão acostumados.

Don: AH, eu tô indo nessa... Depois continuamos.

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Notas: (*) Referência ao filme Still Crazy.
(**) Referência às séries Happy Days e Family Guy

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Jazz e Vida


Relendo a postagem anterior sobre sorte, percebe-se que nosso caro colaborador (e fundador do blog) não gosta muito de elaborar sobre um assunto tão rico e constante no mundo artístico. Creio que um exemplo mais pontual e menos imaginário seria mais interessante no compartilhamento de algumas ideias.

Na primeira metade do século XX surgiu um talentoso pianista de jazz. Muitos o conhecem como Duke Ellington. Seus discos eram um sucesso incomparável no começo da carreira, mas apenas no circuito da crítica profissional. Os conhecedores técnicos do estilo consideravam o jovem Duque um rapaz genial, destinado a grandes coisas. O infeliz morria de fome, mas era gênio. Depois de anos de carreira, lançou o saudoso “Ellington Indigos”, um disco como poucos da época. Ressaltou, dessa vez, sua habilidade de pianista solo, não usando o piano meramente como instrumento de acompanhamento rítmico (como era quase que obrigatório nessa época). A crítica odiou, ele deixou de ser o gênio que era há tão pouco. Se vendeu a troco de comida, coitado. Infelizmente, somado a esse deslize imperdoável, Ellington teve uma longa carreira, manchada por esse disco, um lembrete constante do momento em que vendeu sua alma. Claro que, o que a crítica não se importou em perceber, é que é o povo que reconhece seus gênios. Ellington Indigos apresentou o jazzista ao grande público, e foi justamente esse grande público que foi capaz de levá-lo ao patamar de lenda da música pop. Pobre Duke, vendeu sua alma ao ser honesto, vendeu sua alma ao mostrar um talento recém-descoberto, vendeu sua alma pra comer, sofreu tanto nas mãos dos conhecedores que, creio eu, seu disco “Ellington at Newport”, o mais famoso e mais vendido disco que já gravou, não deve ter dado prazer nenhum a ele. Pobrezinho do artista honesto...

Então cabe a pergunta. É tão difícil assumir que a sorte teve um importante papel na epifania do jazzista? Será mesmo que não foi uma questão de sorte ele perceber que podia (e precisava) fazer algo diferente de agradar uns fracassos que só sabem falar daquilo que não entendem? O próprio evento no festival de Newport (show do qual nasceu o citado disco mais vendido de Ellington) foi surreal por si só!
O Duque estava em baixa novamente, o mundo mudava, a apreciação pelas big bands começava a se restringir aos artistas e idosos, a preferência popular era o folk, ou o blues. Vários músicos fantásticos da banda de Ellington precisaram se demitir, já que não queriam trabalhar de graça. Sobe ao palco do mais famoso festival de música popular até então uma banda desfalcada, cansada, faminta (novamente), sem fé. O show começa pra um público de senhoras analisando suas unhas, sujeitos descolados pensando no melhor caminho pra se voltar pra casa mais tarde, tentando evitar o trânsito mais pesado. Nosso amado e ignorado Duque havia prometido a Paul Gonsalves (seu saxofonista) um solo tão longo quanto este quisesse, quase soando como um presente de fim de carreira, no estilo: “Se é pra acabar, que acabemos com um pouco de classe. Se diverte, cara”.

O solo chega.

Um nervoso sax acompanhado principalmente pelos socos rítmicos no piano, um úmido, constante e quase místico acompanhamento na bateria, combinados com a harmonia demoníaca e alegre do baixo. A festa de Gonsalves e Ellington começa a contagiar o público, a dança começa a correr solta debaixo da chuva de dois dias (honestamente, Newport sempre me soou como uma escolha meio estranha pra um festival ao ar livre), 27 estrofes de improvisação instrumental intoxicam a plateia, os produtores, os outros músicos, os cachorros da vizinhança e as moscas que passavam, procurando pela plateia morta que estava ali há pouco.
Esse único solo, a escolha de Ellington de dar um presente ao membro de sua banda, a sorte de a plateia não ter ido embora ainda, tudo isso resultou num novo fôlego pra carreira do Duque, uma nova vida que não iria mais abandoná-lo.

E é nisso que o jazz, a música, a arte e até a vida se resume. A sorte de achar a próxima nota, não de forma adequada, mas de forma sublime. Nunca subestime o valor do intangível em tudo aquilo que vais fazer. Sem ele, somos só uns vasos vazios que vão quebrar com a primeira brisa de problemas.

"Sometimes you have to play a long time to be able to play like yourself."

                          - Miles Davis

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

EXTRA - Cosmópolis



A ideia pra esse blog nasceu alguns meses atrás. Através de conversas com dois  amigos conhecidos pela internet, eu (Don Healy II) convidei eles para participação na autoria dos textos. Graças à possibilidade do anonimato na rede, cada um de nós adotou um pseudônimo. Dexter Morgan (vivendo em SP) escolheu seu alter ego inspirado na famosa série de televisão, e Meg Simpson (vivendo no RS) escolheu sua nova identidade devido a uma mistura de interesses. Sendo essa uma postagem extra (saindo do padrão semanal que estipulamos desde o primeiro post), achamos interessante abordar o filme “Cosmópolis” (de David Cronenberg e que nos impactou com uma agradabilíssima surpresa), com dois textos especiais, cada um com seu ponto de vista sobre a obra. Enjoy!

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Saía em 2003 da mesa do romancista Don DeLillo o romance Cosmópolis. Uma aventura da era digital, remanescente de uma geração ultrapassada, relembrada apenas como um bando de bêbados mimados e descontentes com as próprias vidas. A técnica havia desaparecido, mas o instinto e a ideia continuavam ali, pulsando como algum órgão sujo num conto de Bukowski. Escondido na escrita clara de DeLillo estava a o estilo que vive há décadas, e foi o diretor e roteirista David Cronenberg que precisou perceber isso.

A geração de um Burroughs nu, um uivante Ginsberg e um perdido Kerouac foi trazida de volta à vida através da magia do cinema. Nenhuma relação com o lançamento em película de “On the Road” foi necessária pra isso. A adaptação cinematográfica de Cosmópolis (que Cronenberg, com extrema fidelidade e, ao mesmo tempo, dando o toque pessoal com surpreendente profundidade) é a manifestação moderna do passado que consegue juntar Sal Paradise (protagonista de On the Road) e Ulysses (apresentação um tanto supérflua, mas podemos lembrar dele através das páginas de James Joyce) em um único personagem com extensos problemas de egocentrismo e negação do próprio mundo, e suas tentativas patéticas de entender e se aproximar de quem o cerca. Era recurso comum na geração beat usar o mundo como uma metáfora para os problemas do próprio mundo, expondo principalmente o lado cruel e doente das pessoas que aqui habitam. O descontentamento com as ideologias agressivas que sempre exigiram a palavra final era manifestado através de nervosos pensamentos disfarçados num oceano de caos, metáforas em conflito e adjetivos contraditórios. Hoje temos um mal constante que se arrasta pelas atitudes humanas, chamado “indiferença”, o que, convenhamos, é um tema difícil de se abordar. Como combater uma característica tão intensa que, por si só, impossibilita qualquer reação aos ataques? A indiferença na qual Cosmópolis se baseia (fidedigna ao mundo em que vivemos) se mostra extremamente fraca, principalmente quando o mundo começa a perceber o resultado dessa nova ideologia. Revoltas nas ruas não são o bastante pra atordoar nosso protagonista, é necessário um mergulho nas ruas que ele tanto evita, escondido em seu universo em que as maiores prioridades são prever o futuro e ofender aqueles que o ajudam. Uma vez que o egocêntrico tenha contato com o mundo real (não o da anarquia sem criatividade, mas aquele em que seus pecados exigem pagamento), aquilo no qual que ele próprio poderia ter se tornado toma forma física, e o único objetivo, o único pensamento que surge com clareza não possui outra escolha que não se concretizar.

O passado não morre enquanto seus crimes não sejam compensados. A geração beat não vai deixar de existir enquanto seus pecados não sejam redimidos. Seu nome pode mudar pra qualquer máscara que soar mais adequada às novas gerações, mas enquanto houve algo pelo que reclamar, ela estará viva, e o único motivo pra isso é que nós, o povo, precisamos dessa possibilidade. A geração beat é a cultura pop.

“The weight of the world is love. 
Under the burden of solitude, 
Under the burden of dissatisfaction 
The weight, the weight we carry is love.”
                        - Allen Ginsberg
                                                                                                                         Don Healy II

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É difícil pensar sobre o quanto a gente está sozinho. Se pensamos na solidão, a ideia em si é nossa companhia, não? Acho que todo mundo já ouviu aquela história de “se você ficar olhando, eu não consigo”. Talvez seja interessante pensar sobre todas as pessoas que esse “você” da piada podem ser.
Assisti há pouco tempo o lançamento “Cosmópolis”, e insisti pra meus colaboradores aqui do blog (assim como tantos outros colegas) que assistissem também. Dou certeza que meus motivos são bem fáceis de entender pra quem conseguir sacar a beleza do filme.
Tentar resumir esse texto ao personagem principal só iria alimentar ainda mais o ego dessa criatura abjeta, então o caminho mais sensato pra seguir tem que ser o do impacto do egoísmo dele no mundo.
Toda essa história clichê de que “tanta riqueza está nas mãos de poucos, por isso temos tanta miséria” é a mais pura verdade, mas uma perda de tempo. Qualquer um quer ser rico, isso não é um desejo que fica só na cabeça dos egoístas e “malvados” (e ter nojo daquilo que queremos ser não é uma coisa muito prática!). Então dizer que “Cosmópolis” é uma narração do resultado do rico mal em choque com o pobre seria uma bela duma hipocrisia. A questão que esse filme explora tão bem é o que passa na cabeça do rico e do pobre numa situação de conflito, não os motivos de cada um. Todos tentamos justificar as decisões do jeito mais inteligente possível, quando só queremos, na verdade, realizar desejos íntimos. Não ficamos lamentando pela camada de ozônio quando desejamos um carro mais potente. Não queremos pensar na criança pobre trabalhando nas roupas de marca que compramos. Se temos raiva do rico, é só porque ele é rico e nós não. Se o rico tem raiva do pobre, é porque o rico sabe o que o pobre realmente quer, que é uma troca de lugar. Se o rico não ajuda o pobre, é por que o rico é cruel, não tem nem quer ter um coração, e se o pobre não ajuda o rico é por que ele tá procurando uma revolta social. Ninguém pensa nos interesses pessoais que guiam todas as nossas vidas. Se escrevemos nesse blog, não é por que queremos que as pessoas tenham contato com alguma coisa que antes não conheciam, é porque queremos escrever!
Esses conflitos que o filme explora são antigos, e não vão acabar nunca. Enquanto existir alguém com alguma coisa melhor que o que você tem, você vai querer ir mais longe também. Não existe ninguém que seja responsável pelos teus problemas, não interessa se você culpa teu chefe, teus pais, teu cachorro ou teu vizinho. O fato é que sempre vai ter dor e tristeza, e enquanto não aprendermos a viver com isso, a única coisa que vamos fazer é bater o pé feito uma criança mimada.
Aos dois ou três anos de idade, fingimos ser adultos. Usamos roupas dos pais, ou coisas parecidas. Aos vinte ou trinta anos, fingimos ser crianças. Será que vai ter alguma hora que vamos assumir a responsabilidade sobre aquilo que queremos e fazemos?

“Confusion hath fuck his masterpiece.”
                        - William S. Burroughs
                                                                                                                   Dexter Morgan


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Uma Alusão à Fortuna


É injusto como os processos criativos da mente se comportam do mesmo jeito que nossos processos metabólicos. Quando você sente dor de barriga, a primeira ideia que nos parece sensata é sentar ao vaso sanitário e deixar a natureza seguir seu curso. Mas, por puro azar, horas depois, lhe bate na cabeça a realidade de que você perdeu tanto tempo apreciando o azulejo à tua volta, mas ainda a água embaixo de ti está limpa (ou, pelo menos, tão limpa quanto pode ser a água de tal vaso). Algumas pessoas resolveriam, então, tomar elementos químicos estranhos ao nosso organismo para facilitar a união da vontade com a ação, o que aumenta bruscamente as chances de alcançar a satisfação anteriormente perseguida. Sacaram? Imaginem os Rolling Stones nos anos 1960. É difícil de imaginar que os rapazes escreveram tantas músicas, tão boas, durante tanto tempo, sem sofrer nenhum bloqueio momentâneo. Parece natural imaginar Brian Jones e Keith Richards sentados numa cama suja, num quarto sujo, com os violões na mão, olhos pregados no teto, sem uma única ideia nova que tenha o mérito de ser aproveitada. De repente, olham juntos para a mesa ao lado, e alguma força superior, cósmica, divina, transcendental, algum alinhamento misterioso dos planetas os levam a pensar juntos na possibilidade de fumar aquele cigarro artesanal com alguma substância química (estranha ao nosso organismo) para facilitar a união da vontade com a ação. Minutos depois, a criatividade deslancha. Todo o preconceito com as frases musicais ruins desaparece, uma nota leva a outra, sons horríveis saem dos instrumentos e de suas bocas, mas é tudo motivo de riso. De repente, Jones sente que uma determinada sequência de notas lhe soa bem, mesmo no meio do caos. Richards ainda está em sua própria viagem psicodélica, mas também acha alguma coisa interessante. Cientes de seu estado, seria um desperdício deixar suas mentes alteradas esquecerem essas sequências. Registram-nas de qualquer jeito possível. Gravam, rabiscam, explicam pro seu vizinho, tocam a nova peça ao telefone pra alguma mocinha que foi ingênua o bastante pra acreditar que essa nova música era pra ela, e a grava em sua secretária eletrônica. E assim começa o esboço de algum dos primeiros sucessos dessa mitológica banda.

Não é justo como o processo que nos leva à excelência, ou mesmo ao vácuo criativo, não está em nossas mãos. Estar à mercê da mais pura sorte é perturbador. É claro que na comparação que fiz no parágrafo anterior, tanto o constipado imaginário quanto os (não mais) jovens guitarristas conseguiram cumprir seus objetivos. Insistência por diferentes caminhos foi a saída comum. Mas em nenhum dos casos pode-se dizer que encontrar o caminho não foi uma questão de fortuna. E, no fim das contas, quanto é que não dependemos da sorte?


“There must be something wrong with me
What it is I can’t quite see
I can’t seem to do nothing right!”
                           - Seasick Steve