segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Jazz e Vida


Relendo a postagem anterior sobre sorte, percebe-se que nosso caro colaborador (e fundador do blog) não gosta muito de elaborar sobre um assunto tão rico e constante no mundo artístico. Creio que um exemplo mais pontual e menos imaginário seria mais interessante no compartilhamento de algumas ideias.

Na primeira metade do século XX surgiu um talentoso pianista de jazz. Muitos o conhecem como Duke Ellington. Seus discos eram um sucesso incomparável no começo da carreira, mas apenas no circuito da crítica profissional. Os conhecedores técnicos do estilo consideravam o jovem Duque um rapaz genial, destinado a grandes coisas. O infeliz morria de fome, mas era gênio. Depois de anos de carreira, lançou o saudoso “Ellington Indigos”, um disco como poucos da época. Ressaltou, dessa vez, sua habilidade de pianista solo, não usando o piano meramente como instrumento de acompanhamento rítmico (como era quase que obrigatório nessa época). A crítica odiou, ele deixou de ser o gênio que era há tão pouco. Se vendeu a troco de comida, coitado. Infelizmente, somado a esse deslize imperdoável, Ellington teve uma longa carreira, manchada por esse disco, um lembrete constante do momento em que vendeu sua alma. Claro que, o que a crítica não se importou em perceber, é que é o povo que reconhece seus gênios. Ellington Indigos apresentou o jazzista ao grande público, e foi justamente esse grande público que foi capaz de levá-lo ao patamar de lenda da música pop. Pobre Duke, vendeu sua alma ao ser honesto, vendeu sua alma ao mostrar um talento recém-descoberto, vendeu sua alma pra comer, sofreu tanto nas mãos dos conhecedores que, creio eu, seu disco “Ellington at Newport”, o mais famoso e mais vendido disco que já gravou, não deve ter dado prazer nenhum a ele. Pobrezinho do artista honesto...

Então cabe a pergunta. É tão difícil assumir que a sorte teve um importante papel na epifania do jazzista? Será mesmo que não foi uma questão de sorte ele perceber que podia (e precisava) fazer algo diferente de agradar uns fracassos que só sabem falar daquilo que não entendem? O próprio evento no festival de Newport (show do qual nasceu o citado disco mais vendido de Ellington) foi surreal por si só!
O Duque estava em baixa novamente, o mundo mudava, a apreciação pelas big bands começava a se restringir aos artistas e idosos, a preferência popular era o folk, ou o blues. Vários músicos fantásticos da banda de Ellington precisaram se demitir, já que não queriam trabalhar de graça. Sobe ao palco do mais famoso festival de música popular até então uma banda desfalcada, cansada, faminta (novamente), sem fé. O show começa pra um público de senhoras analisando suas unhas, sujeitos descolados pensando no melhor caminho pra se voltar pra casa mais tarde, tentando evitar o trânsito mais pesado. Nosso amado e ignorado Duque havia prometido a Paul Gonsalves (seu saxofonista) um solo tão longo quanto este quisesse, quase soando como um presente de fim de carreira, no estilo: “Se é pra acabar, que acabemos com um pouco de classe. Se diverte, cara”.

O solo chega.

Um nervoso sax acompanhado principalmente pelos socos rítmicos no piano, um úmido, constante e quase místico acompanhamento na bateria, combinados com a harmonia demoníaca e alegre do baixo. A festa de Gonsalves e Ellington começa a contagiar o público, a dança começa a correr solta debaixo da chuva de dois dias (honestamente, Newport sempre me soou como uma escolha meio estranha pra um festival ao ar livre), 27 estrofes de improvisação instrumental intoxicam a plateia, os produtores, os outros músicos, os cachorros da vizinhança e as moscas que passavam, procurando pela plateia morta que estava ali há pouco.
Esse único solo, a escolha de Ellington de dar um presente ao membro de sua banda, a sorte de a plateia não ter ido embora ainda, tudo isso resultou num novo fôlego pra carreira do Duque, uma nova vida que não iria mais abandoná-lo.

E é nisso que o jazz, a música, a arte e até a vida se resume. A sorte de achar a próxima nota, não de forma adequada, mas de forma sublime. Nunca subestime o valor do intangível em tudo aquilo que vais fazer. Sem ele, somos só uns vasos vazios que vão quebrar com a primeira brisa de problemas.

"Sometimes you have to play a long time to be able to play like yourself."

                          - Miles Davis

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